A força de Clay, a construção de Clay, a ponte de Clay

Eu admiro bastante o trabalho do Markus Zusak desde que tive a oportunidade de ler A Menina que Roubava Livros, em 2009, e a partir de então espero pela oportunidade de ler esse livro. Era sempre uma agonia saber que ele estava trabalhando na escrita, mas nunca dizia quando a sua próxima obra seria lançada. Esperei pacientemente. Então o livro foi terminado e publicado. Saí correndo e o comprei o mais rápido que pude.

Dessa vez, Zusak não me levou para a Alemanha, mas sim para uma cidade pequena da Austrália. Estando lá, fui apresentado a uma família singular, composta por um pintor, uma pianista refugiada e cinco garotos terrivelmente encrenqueiros. Era a família Dunbar. Uma família que, apesar de seu arranjo diferenciado, era uma célula comum, com seus perrengues e redenções diárias.

Porém, quando a conhecemos, o que era a família Dunbar já não existe mais: com a morte de Penélope, a mãe dos moleques bagunceiros, tudo se desfez. O pai, desnorteado, foi embora e abandonou-os à própria sorte, que passaram a contar apenas com o irmão mais velho, Matthew. Foi aí que ele deixou de ser pai e virou O Assassino. Aquele que terminou de matar cada um dos cinco garotos Dunbar. Matou seus sonhos, suas esperanças, seus afetos e a definição de família que durante tantos anos fora fiada.

Em um dia normal de suas vidas não tão normais, os Dunbar são surpreendidos quando, de repente, o pai deles aparece com um convite estranho: ele quer ajuda para terminar de construir uma ponte na cidade onde mora atualmente. Assim, do nada. Como se fosse a coisa mais aceitável do mundo um pai que abandona os filhos aparecer de novo e ainda fazendo pedidos. Todos os garotos Dunbar decidem enxotá-lo do local, ninguém ali aceitaria tamanho disparate... Ninguém, menos Clay. O quarto Dunbar. O que sempre fora apaixonado por ouvir histórias do pai e da mãe. Aquele que sempre teve uma alma que ressoava numa frequência própria. O generoso Clay.

Mesmo contra a vontade dos irmãos, ele vai. Vai e, junto com o pai, constrói a ponte. Como é dito em uma passagem do livro, aquela ponte estava sendo construída dele mesmo, não apenas de tijolos, cimentos e varas. Clay colocava a si mesmo naquele empreendimento, e nem ele sabia o porquê. Clay era um garoto excepcional, que encarava as coisas de um jeito próprio. E ele realmente fazia tudo a sua volta receber um pouco dele, com a sua doação e força de vontade extremas.

Nesse ponto da narrativa, Matthew, que é quem nos conta a história, intercala a vida de Clay e Carey (sua vizinha-quase-namorada-hipista) com a de Penélope e Michael (o pai dos garotos). Dessa forma, podemos entender as sutilezas dos relacionamentos de cada um e também ver como o amor, apesar de se manifestar das mais variadas formas, é sempre igual ao amarrilhar duas pessoas diferentes que acabam por se tornar uma só.

Acho que não devo prolongar mais quanto aos detalhes do enredo, pois a ideia não é dar nenhum spoiler nesse texto, porém quero ressaltar alguns pontos que foram cruciais para a minha leitura:

1. Clay é um dos personagens mais fortemente humanos que eu já conheci. A sua coragem em não fugir da dor, mas abraçá-la e fazer dela sua parceira, me inspirou de modo tão intenso que até hoje (quase um mês após a leitura), eu ainda me pego pensando na sua trajetória. Um moleque forte, mas que tem a sua fortaleza em reconhecer a própria inaptidão e fraqueza. Um garoto apaixonado por histórias, que sempre estava em silêncio, mas sua alma mantinha um murmurar intenso e contínuo que infelizmente poucas pessoas no mundo eram capazes de compreender. Felizmente, Carey era uma dessas pessoas.

2. O Dunbar mais novo, Tommy, e sua coleção nada convencional de animais que contém uma mula, um cachorro, um gato, um peixe e um pombo são uma pincelada de ar fresco na história, que muitas vezes assume um tom muito pesado.

3. As referências aos clássicos gregos, como a Ilíada e a Odisseia, acrescentam um pano de fundo heroico à narrativa. Assim como Aquiles e Odisseu enfrentaram seus demônios, a vida dos Dunbar é uma eterna guerra em um ambiente hostil, onde a garra e a força de vontade são determinantes para garantir que todos sobrevivam. Clay é aquele que carrega dentro de si o heroísmo mais exacerbado, que desafia convenções e até mesmo a própria definição de força.

Por fim, preciso terminar esse texto dizendo que imaginei Clay como a personagem da música behind blue eyes, da banda The Who. Quem olhava pra Clay não sabia como era ser o homem triste, o homem mal (sic); Não acessava a essência daquele que estava a sua frente. O acúmulo de tristezas e culpas (a maioria delas infundadas) fez de Clay uma das personas que mais conversou comigo entre todas a que já conheci, sejam através de livros, filmes, animes ou qualquer outro tipo de narrativa. Eu conseguia praticamente materializar Clay na minha frente e conversar com ele. Eu passei a sentir as dores que ele carregava. Eu cheguei ao ponto de quase sair correndo enquanto outras pessoas tentariam me segurar a troco de algumas moedas, como Clay. Eu vi Clay em mim, porque acho que no fundo somos bem parecidos. Dois garotos enternecidos tentando enfrentar a fúria do mundo. E construindo coisas, sejam pontes ou mundos paralelos, cheias de nós mesmos. Dando a cara pra bater e até mesmo gostando do estalo do soco, da dor, do sangue que escorre. Assim vamos cumprindo nossa missão e, quem sabe, quem nos acompanha na jornada sinta um pouco dessa tempestade harmoniosa que é a nossa vida e decida participar dela também.


Comentários

  1. Também passei a gostar do Suzak depois de ler A Menina Que Roubava Livros. Cheguei a ler outras obras dele também, a maioria bem interessante. Uma resenha e tanto, vou adicionar aos desejos de leitura. Fiquei realmente curioso.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Valew pela força, Agno! Espero que também curta a leitura!

      Excluir
  2. Oi Jessé! Eu tenho um sério problema com livros e autores que ficam super famosos; de tanto ouvir falar eu pego ranço fácil fácil. Isso aconteceu com "A menina que roubava livros", tenho aquela edição luxo linda, li algumas páginas mas larguei logo e só fico tirando poeira dele na estante (isso tem anos)...

    Até ler essa resenha não sabia que esse era um livro do mesmo autor... parabéns pelo texto, fiquei interessada e acho que essa será minha porta a esse autor.

    Abs.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Kelly!

      Entendo a sua reticência com o autor, mas recomendo muito a leitura dos livros dele! Apesar de ter se tornado modinha, eles possuem uma qualidade muito elevada. O Zusak sabe escrever como poucos!

      Se você ler, me diga depois o que achou, pode ser?
      Abraço!

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas