Reflexões de um cristão ao ler Otelo

Eu nunca tinha lido nada de Shakespeare, então quando vi que o livro escolhido para inaugurar o  Clube de Leitura¹ foi Otelo, estremeci de alegria: era a oportunidade perfeita para eu finalmente conhecer a obra desse inglês que marcou o mundo com os seus textos trágicos.
Então, com a expectativa lá no alto (ou hype, como os jovens falam) eu comecei a ler essa obra que, segundo uma pesquisa rápida feita no Skoob, tratava principalmente de uma característica peculiar dos seres humanos: o ciúme. 

Tendo isso em mente, mergulhei na história de amor entre Otelo e Desdêmona e nas tramoias malignas de Iago. Esse último personagem foi, para mim, o mais interessante de toda a história. Sim, Otelo também é uma grande persona (um mouro que vira oficial de Veneza, uau!), assim como tambem Desdemona, a virgem pura que renega a própria família em nome de um amor aventureiro e leal. Porém, nenhum deles me pareceu mais rico em complexidade e verossimilhança do que Iago, um alferes de Otelo que, por ser preterido por outro em uma promoção de cargo, cria ódio de seu chefe e resolve transformar a vida dele em um inferno.

Nós, como seres totalmente pecadores e depravados, certamente poderemos nos identificar com esse sentimento que moveu Iago a fazer coisas deploráveis, como manipular o seu patrão fazendo-o pensar que estava sendo traído e levá-lo a assassinar a própria esposa (!), que além de tudo ainda era inocente de suas suspeitas vis e fabricadas pela mente doentia de seu empregado. Por isso, reinterpretei o que havia lido antes sobre a obra e entendi que o principal a ser tratado, pelo menos para mim, não foi o ciúme de Otelo por Desdêmona, mas sim de Iago pelo seu desejo de status e promoção profissional que lhe foi negado. O que o move é o puro ressentimento de não ter recebido algo que, em sua mente, lhe era digno, e assim ele se viu no direito de sentir tremendamente ofendido e reparar esse tão grande mal que lhe foi feito.

Isso não nos parece familiar? Quantas vezes não somos tentados a fazer o mesmo (claro que não levando alguém a assassinar a própria esposa, mas reinterpretando uma situação comum do cotidiano e nos sentindo ofendidos apenas porque achávamos que merecíamos algo e não aceitando que outra pessoa receba algo que sentimos que deveria ser nosso)? Tudo isso é orgulho, um dos brindes que nos acompanha desde o pecado original e que muitas vezes nos move, mesmo sem percebermos. John Bevere afirma que a ofensa é a "isca de Satanás", ou seja, o diabo tenta a todo tempo injetar em nós o veneno do ressentimento e da sensação de que merecemos algo melhor, de que as pessoas não nos tratam como a nossa posição, ou estudo, ou família requer.

O problema se torna ainda mais alarmante porque vivemos em uma época onde se ofender é a coisa mais natural e até esperada do mundo: quem não se ofende é considerado bobo e manipulável pelas pessoas. Vivemos em um tempo em que todos sabem de cor e salteado os seus direitos, e querem de qualquer jeito que a sociedade, o estado, a família, os amigos e tudo o mais que tiver ao redor, sacie e contemple todas as suas vontades, e para piorar, não há nem sequer espaço para a gratidão, pois quando a ideia presente é a de que o outro está lhe dando algo que você tem direito, isso não passa de uma obrigação. Por isso somos e estamos cada vez mais mimados e presos em nós mesmos, pois nossa cultura tende a interpretar os favores como regras, e não mais como amabilidade e companheirismo.

Bom, acredito que já escrevi demais. Essa foi a minha reflexão espiritual-antropológica ao ler Otelo, e digo que sem dúvida foi uma das melhores leituras desse ano (até agora). Curti muito a escrita desse gigante inglês e certamente lerei mais obras dele, se depender apenas da minha vontade.

Notas

¹ Li essa obra para uma reunião do Clube de Leitura que passei a integrar no início do ano.



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