Resenha: O Senhor das Moscas

Título: O Senhor das Moscas
Autor: William Golding
Editora: Nova Fronteira
Páginas: 258

Nota: 5/5

Durante a Segunda Guerra Mundial, um avião que saía da Inglaterra sofre um acidente e cai em uma ilha deserta e até então inabitada por seres humanos. Entre os tripulantes, os únicos que conseguiram sobreviver foram meninos, crianças e adolescentes, que se vêem sozinhos na ilha sem a presença de nenhum adulto.

Como forma de otimizar a vida naquela ilha selvagem e facilitar as tomadas de decisões, os meninos decidem eleger um chefe que seria responsável por organizar as coisas e unir a todos em ações que possibilitassem um resgate. A assembleia escolhe Ralph como líder, um garoto centrado e com bastante senso de coletividade. A ação que ele elege como principal é a criação de uma fogueira na montanha mais alta da ilha a fim de chamar atenção de possíveis navios ou aviões que passarem por aquelas bandas. A preocupação de Ralph é sempre com a possibilidade de todos serem salvos o mais rápido possível, pois a ilha é um lugar insalubre, insuportavelmente quente e que não oferece condições dignas para se viver.

Em contraponto a Ralph surge Jack, um garoto que tem mais ou menos a mesma idade e que era líder de um coral quando vivia na Inglaterra. Isso faz com que ele tenha em si um grande desejo por poder e por controlar a todos na ilha. Ele passa a rivalizar com Ralph pela figura de chefe, mas enquanto o primeiro pauta as suas decisões na sensatez e no pragmatismo, Jack se entrega à selvageria e encontra nela uma forma de se impor e de intimidar os outros garotos. A sua principal preocupação é com a caça de porcos e javalis, e para isso ele passa a se pintar e a viver de forma praticamente tribal, tendo como combustível para essa nova vida a emoção de caçar e matar animais. A cada nova caçada ele se torna mais bicho e menos gente.

Entre a tensão desses dois líderes, existem personagens que se desenvolvem na sombra de um ou de outro. Porquinho, um garoto obeso e tímido, é o mais inteligente da ilha e sempre quer tomar decisões racionais, o que o aproxima de Ralph, tornando-o o seu braço direito. Também é Porquinho que encontra uma concha na ilha, que passa a representar a civilidade no local: toda vez que a concha era soprada e emitia o seu som, uma assembleia era convocada, e quem estivesse segurando a concha durante a reunião possuía o direito a fala e não poderia ser interrompido. Com o seu jeito introvertido e inábil para relações humanas, Porquinho se torna um dos principais alvos das zombarias e ataques de Jack, que vê nele um rival contra o seu projeto de animalização.

Outro personagem extremamente importante para a obra é Simon, um dos integrantes do coral de Jack, mas que não cede à loucura de seu ex-regente. Portador de transtornos mentais, ele frequentemente tem visões e acessos de irracionalidade, onde vê e ouve coisas que não existem. No entanto, ele é um dos garotos que mais se mantém preso à civilidade e faz o possível para alertar a todos que o caminho mais acertado é seguir Ralph e a suas ações democráticas. Também está profundamente ligada a Simon a figura do Bicho, uma suposta entidade sobrenatural e demoníaca que atacaria a ilha durante a noite. Simon é o primeiro e o único a desvendar o que está por trás do Bicho, que é algo perfeitamente natural (eu não vou dizer o que é porque não posso dar spoiler). A mensagem que Simon nos passa é que talvez os loucos sejam os mais sãos, além de que o homem é o  maior monstro que pode assustar a si mesmo (isso foi quase um spoiler, me perdoe).

Enquanto toda essa tensão se desenrola e a facção de Jack ganha cada vez mais força, vemos o selvagem vencendo o civilizado, a força sobrepujando a razão e animalização corroendo qualquer resquício de humanidade. Nessa obra aclamada em todo o mundo, William Golding versa sobre a natureza humana de forma assustadora mas ao mesmo tempo muito honesta. Na velha celeuma entre Hobbes e Voltaire sobre como o ser humano é em seu estado natural (se bom ou mau), o autor defende a tese hobbesiana. O homem é o lobo do homem, mal desde o nascimento. A histeria de Jack e de seus seguidores demonstra o furor existente dentro de cada um de nós, que luta diariamente para sair e aterrorizar o que estiver ao nosso alcance. Não há misericórdia nem razoabilidade, só uma vontade schopenhauriana por poder e destruição.

Devo confessar que nesta briga estou com Golding e Hobbes: somo maus desde que nascemos, ou se quisermos ir além e irmos à teologia de Davi, na crença judaico-cristã, somos maus desde a concepção. Isso assusta? Bastante, mas creio que é preciso saber quem somos para, a partir disso, melhorarmos enquanto indivíduos e sociedade. Só é possível evoluir quando se reconhece que algo errado existe e precisa ser superado. Negar o óbvio só nos afoga ainda mais em desespero.

Esse livro é uma pérola e, na nossa era pós-moderna, torna-se uma leitura obrigatória. Infelizmente somos viciados em negar tudo o que há de feio e maléfico em nós e no mundo, aplicando camadas de conceitos espúrios e superficiais que nos submergem em uma teia de mentiras e ilusões sobre nós mesmos. O ser humano pós-moderno é histérico porque não sabe quem é de verdade. Está na hora de relembrarmos do aforismo grego "conhece-te a ti mesmo" e encararmos as nossas leviandades. Nossos demônios só serão superados quando formos honestos com a nossa própria natureza, afinal Simon estava certo e não existe nenhum bicho pior que o homem.

Comentários

  1. olá boa noite, gostaria de ver uma resenha de Ratos e Homens

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    1. Obrigado pela indicação e pelo comentário. Abraço!

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  2. Oi Jessé que bom que escreveu. Eu li esse livro o ano passado, fiquei impactada. Nunca tive dúvida da maldade humana, e essa desde a concepção, mas esse livro conseguiu de alguma forma expressar isso quase como um grito.

    Gostei do que disse sobre a nossa era pós-moderna. Ė verdade. E sabe a leitura me ajuda muito nesse auto conhecimento.

    Outros livros que li com essa temática que me vem a mente são: Coração das Trevas (Conrad) e O médico e o monstro (Stevendon)

    Abs.

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    1. Olá, Kelly!

      Fico feliz que tenha gostado da resenha.

      Eu já li O Coração das Trevas e ele é muito bom também, dá pra fazer um paralelo interessante com O Senhor das Moscas. O Médico e o Monstro ainda não pude ler, mas tenho muita vontade.

      Quanto a nossa era pós moderna, é triste ver que as pessoas no geral têm escolhido a mentira em relação a verdade...

      Muito obrigado pelo comentário, abraço!

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